Ana Botafogo vence a batalha dos anos fazendo o que mais gosta: dançar
Bailarina desde os 18 anos, Ana Botafogo faz confissões sobre envelhecimento e arte
Foto: Jefferson Botega / Agencia RBS |
Patrícia Lima
Ela tem sucesso, reconhecimento, talento. Mas o tempo cobra seu
preço, especialmente de alguém que depende do desempenho do corpo. Por
hora, a primeira-bailarina Ana Botafogo vence com maestria a batalha dos
anos e as tragédias da vida fazendo aquilo que mais gosta e mais sabe
fazer: dançar
Essa história de só a bailarina que não tem defeito, da música
Ciranda da Bailarina, de Chico Buarque, não combina muito com a maior
estrela da dança clássica brasileira, a primeira-bailarina do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, Ana Botafogo. Procurando bem ela tem medo
de cair, tem apetite para comer de tudo, tem dores todos os dias e tem
remela quando acorda às seis da matina. Só uma coisinha a bailarina não
tem: tempo.
Por mais que Ana tenha ludibriado o tempo para passar dos 50 anos
ativa (a idade precisa ela reluta em revelar), com um corpo impecável e
dançando os balés mais exigentes, ela sabe que terá de prestar contas à
idade, mais cedo ou mais tarde. Um dia terá que parar de dançar,
encontrar um novo sentido para sua arte, conviver com um corpo saudável,
porém limitado. Terá que envelhecer, enfim. Mas quando?
- Uma bailarina não pode ficar velha nunca! - exclama Ana, orientando
o fotógrafo Jefferson Botega, que produziu as imagens que ilustram esta
reportagem, para que tomasse cuidado com os efeitos da luz em seu
rosto.
O tempo vai chegar para Ana, mas não como chega para todos os demais.
Pelo menos não enquanto ela puder enganá-lo, surpreendê-lo. Como não
tem tempo, a bailarina também não tem cansaço, preguiça, acomodação.
Dedica-se à profissão com o mesmo afinco e disposição que tinha aos 18
anos, quando começou a dançar profissionalmente, na França. Todos os
dias, faz uma hora e meia de aula de balé no Theatro Municipal (sim, a
Ana Botafogo ainda faz aulas, com uma professora), ensaia o espetáculo
que estiver em cartaz por quatro horas e ainda pratica Pilates e
fisioterapia.
Folga no domingo? Sim, a bailarina quase sempre tem.
- Meu corpo é uma máquina bem trabalhada e sempre fui boa de
manutenção - ela conta e sorri. - Tive muito cuidado com a prevenção de
lesões. Por isso tenho 36 anos de carreira com a mesma energia.
O pequeno corpo de 45 quilos espalhados com harmonia milimétrica em
1m60cm sustentou a imagem de artista vigorosa e capaz de executar
movimentos de grande dificuldade. Prova é sua identificação com dois
clássicos, Giselle e O Quebra-Nozes, cujas protagonistas lhe garantiram
apresentações e aplausos no mundo todo. Um prato rico em carboidratos e
sem carne vermelha antes dos espetáculos e tudo o mais que o apetite
permitir nas demais refeições é o segredo da vitalidade de Ana.
Alimentar-se bem, sem restrições, e ter energia para gastar: olhando
para ela, essa conta parece até fácil.
Aliar a rotina pesada de exercícios físicos e dança a uma alimentação
prazerosa e saudável parece ter sido o suficiente, até agora, para
trapacear o tempo. No cabelo quase não vai tinta, exceto quando se
aproxima alguma festa - como era o caso do dia seguinte à entrevista, em
que Ana pintaria o cabelo para o casamento de um sobrinho. A pele
lisinha do rosto não recebe intervenções cirúrgicas ou estéticas. Aliás,
mal recebe os creminhos obrigatórios de todas as noites.
- Pra você ter uma ideia, ano passado fui pela primeira vez ao
dermatologista. Ele me receitou uns cremes lá. Eu tento, mas às vezes
esqueço de passar, menina!
Dores, tragédias e desilusões
Ana Maria Botafogo Gonçalves Fonseca é a bailarina que também tem
sofrimento - como todas as outras, diz ela, desmentindo Chico Buarque.
Em 36 anos de carreira, aprendeu a conviver com as dores do corpo,
causadas pelo esforço e pela repetição dos movimentos. Das tendinites,
entorses, dores musculares e afins já perdeu a conta.
- Aprendi a conviver com isso. De manhã, por exemplo, quando estou
fria, dói tudo. Mas à medida que o dia começa e eu me exercito, vai
passando - diz, resignada.
No ano passado, viveu o momento mais tenso da carreira, quando rompeu
os ligamentos do pé durante um espetáculo, o que a obrigou a ficar três
meses em recuperação e outros sete sem dançar. Para uma bailarina de 20
anos, isso seria ruim. Para uma mulher que insiste em estar no palco
mesmo depois dos 50, esse tempo poderia significar uma perda
irrecuperável de massa muscular e resistência corporal. Não para Ana
Botafogo.
Ela também é a bailarina que viveu, fora dos palcos, dramas pessoais
semelhantes aos que representa na ponta dos pés. Viúva por duas vezes,
teve seus sonhos de amor colhidos por fatalidades. Em 1988, casada havia
apenas dois anos e meio com o bailarino inglês Graham Bart, viu seu
marido ser arrastado por uma onda ao banhar-se na Pedra do Leme, no Rio
de Janeiro. Passado o impacto da tragédia, casou-se novamente com o
advogado Fabiano Marcozzi. Depois de 10 anos de união, a morte veio
buscar o segundo companheiro, vitimado por um acidente vascular cerebral
em 2001. Gostaria de ter tido filhos, mas não os teve nos dois
casamentos.
A solução para superar a amargura e voltar a ver a vida com
entusiasmo foi a mesma que Ana usa para todas as demais situações:
dançar. No Rio de Janeiro, no palco do Municipal, e em palcos do Brasil e
do mundo, ela reafirma a escolha que fez ainda muito jovem, quando foi
selecionada para o corpo de baile do Ballet de Marseille, do coreógrafo
Roland Petit.
- Quando entrei lá e vi aquilo tudo pensei: "Essa é a vida que eu quero para mim". E foi, né?
Ao comentar os enredos trágicos que protagonizou na vida real, Ana
mostra, sim, uma ponta de tristeza. Mas logo trata de afirmar o quanto
gosta de viver. Enquanto orienta a maquiadora a não carregar na sombra
("olhos bem marcados são apenas para o palco"), ela dispara em poucas
palavras tudo o que aprendeu.
- Apesar de tudo, a vida é boa comigo. Sou uma pessoa alegre e feliz, com muita coisa ainda para fazer.
Falta de maneira ela não tem
Em um país de escassa cultura clássica, Ana Botafogo escolheu
justamente o caminho da arte tradicional, em detrimento à moda do balé
moderno ou contemporâneo. Não bastasse isso, dá exemplo de determinação
ao manter-se como primeira-bailarina por mais de 30 anos - e ainda sem
planos de aposentadoria.
Para falar sobre sua história e sobre a dança, a artista participa de
eventos como o que foi promovido recentemente pelo Barra Shopping Sul,
em Porto Alegre. Com uma decoração inspirada no balé O Quebra Nozes, do
qual Ana já foi protagonista inúmeras vezes, o shopping a convidou para
acender as luzes.
- Nunca perco a oportunidade de falar com as pessoas, incentivar as
jovens bailarinas a acreditarem na dança clássica, a seguirem seus
sonhos. Quero fazer isso cada vez mais.
Desde o samba de sapatilhas, que interpretou no desfile da escola de
samba União da Ilha em 1991, até o espetáculo contemporâneo que montou
ao lado de Carlinhos de Jesus, Ana se reinventa em muitas empreitadas.
Tem ganas de coisas novas, de desafios. Com muita, mas muita relutância,
está tentando afastar-se dos balés tradicionais, que já representou
muitas vezes. Seu último espetáculo, que comemorou os 35 anos de
carreira, é Marguerite e Armand, uma versão de A Dama das Camélias, de
Alexandre Dumas, coreografada em 1963 por Federick Ashton.
Sobre fazer novelas novamente - ela atuou em Páginas da Vida, de
Manoel Carlos, interpretando uma professora de balé -, entusiasma-se.
Mas não agora. Não ainda.
- Posso ser atriz com 80 anos. Mas bailarina eu tenho que ser agora, enquanto tenho tempo.
Assim, inquieta, ela não para de querer, de buscar, de sonhar com o
próximo espetáculo. Talvez seja esse, afinal, o verdadeiro motivo pelo
qual Ana tem surrupiado dos anos o tempo que a bailarina não tem.
Ao relativizar o envelhecer, a bailarina, que não tem tempo, ganha todo o tempo quiser.
Fonte:
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/donna/noticia/2012/11/ana-botafogo-vence-a-batalha-dos-anos-fazendo-o-que-mais-gosta-dancar-3953398.html